ELA 4z284p

Por Dionísio Ladeira 6u51t

ELA

Eu pensava nela. Não que andasse sonhando acordado ou suspirando versos como um poeta em fim de tarde. Nada disso. Pensava nela com uma constância serena, como quem pensa no cheiro do café coado em pano ou na brisa fresca que chega sem alarde pelas frestas da janela.
Pensava nela. Apenas.

Você vai se meter:- Vai ver que pensava na infância na roça, no milho assado na brasa, nas manhãs de pão com manteiga derretida...
– Pensava nas festas juninas, nos fogos espocando, nos bailinhos no salão da igreja...
– Pensava nas serenatas tortas, nos bilhetes dobrados ados de mão em mão na sala de aula, na primeira vez em que o coração tropeçou. Pensava. Mas pensava nela...

– Vai ver, então, que pensava nos tempos da faculdade, nas conversas sobre mudar o mundo entre um copo e outro no Bar do Canto...
– Pensava no teatro estudantil, nos protestos pacíficos, na vontade de ser alguém que fizesse sentido.
– Pensava em ideias que brilhavam mais do que os olhos. Pensava. Mas pensava nela...

E pensava nela como o Ricardo também pensava nela...
E você, já achando tudo muito confuso:
– Vai ver — sei lá — que pensava em Coimbra, onde o avô aprendeu a dizer “rapariga” sem ofender ninguém...
– Pensava nas cartas datilografadas com fita roxa, nos selos lambidos com cuidado, nos correios que levavam promessas.
– Pensava no tempo, e em como ele, às vezes, anda de ré. Tá quase lá... Pensava nela...

E ela é uma ideia.
Ideia que o Ricardo declamou no último discurso dos formandos de Letras da UFV, com um lirismo que fez até o reitor marejar os olhos.
Ela, em todas as formas e intensidades, está no início de toda criação — no papel em branco, no tijolo cru, na tela digital.
Está nas músicas e nas máquinas, nos quadros e nas equações.
Mas hoje ela me traiu.

Sem que eu dissesse nada, ela apareceu — pequena, insistente, quase maldosa.
Ficou rondando, me cutucando por dentro, como quem exige atenção.
Tentei ignorá-la, fazer de conta que não existia. Mas ela me venceu.
Me arrancou a paz, me travou a fala, me fez perder horas.
Pensei em gritar, em bater na mesa, em mandá-la embora para sempre...

Mas aí, num lapso, ela brilhou.
A frase perfeita.
A palavra exata.
Aquela ideia, que parecia me torturar, virou texto.

E eu sorri. Porque, apesar de tudo, ela me acompanhava.
Era minha.

A inspiração.


Publicado na edição 2.048 de 23/05/2008